sexta-feira, setembro 29, 2006

O Melhor Anjo no 35º Festival d’Automne à Paris (III): Steve Cohen & Elu

Crítica de dança

My own private inferno

I wouldn’t be seen dead in that
de Steven Cohen & Elu
20 Setembro 2006, 20h30, sala cheia
Centre Georges Pompidou, Paris
35º Festival d’Automne à Paris

Sul-africanos, transformistas, fetichistas e militantes de uma homossexualidade que não se esconde. É assim que querem ser definidos os coreógrafos e intérpretes Steve Cohen & Elu, a dupla que abriu a programação de dança do 35º Festival d’Automne à Paris, entre 20 e 23 de Setembro, no Centre Pompidou.

São muito poucos os artistas que desenvolvendo um trabalho profundamente marginal e complexo, conseguem ao mesmo tempo trabalhar para plateias mais convencionais – leia-se, a plateia de dança contemporânea que caminha cada vez mais para um sedentarismo contrário ao discurso de muitos criadores. Se a oportunidade pode muitas vezes surgir a partir de um critério meramente subjectivo de programação, não é menos verdade que alguns desses artistas estão de facto a querer dialogar com a convenção, pois só nela o seu discurso pode surtir algum efeito. São actos manifestamente políticos, aqueles que Steve Cohen & Elu fazem, apesar das dificuldades de circulação. E é por isso que fazem parte desse grupo de “eleitos”. O trabalho que desenvolvem em conjunto desde 1997, desafia, pela sagacidade, sentido de oportunidade e ambígua fronteira ficção/real, os códigos e as grelhas de recepção que fazem muita da programação e criação europeia.

A peça-escândalo «I wouldn’t be seen dead in that!» (2003) é um exercício brutal, inconformado, desconcertante e provocador que não pode deixar ninguém indiferente. Noções como as de poder, confronto e conquista são trabalhadas por um grupo de seres mutantes que compõem o elenco (três homens e três mulheres).

Aqui, o humor ácido e negro de Steve Cohen & Elu dispara para todos os lados, mas sobretudo para o ritual fetichista da caça e da dança. Ao mesmo tempo que vamos vendo imagens de orgulhosos caçadores (que denunciam ser cinzentos burocratas no dia-a-dia), o palco enche-se de cabeças de animais selvagens empalhadas, grotescos seres andróginos, sapatos de salto agulha de diversas cores, formas e feitios, e símbolos religiosos, do judaísmo ao cristianismo. Há de tudo para todas as ortodoxias.

O espectáculo, que, em certos momentos está mais perto da instalação performática que da coreografia (há ali uma dimensão plástica que envolve o movimento) cheira e sabe a morte, luxúria, excesso e vício. Para a sua construção convoca-se a dança butoh, o vocabulário clássico coreográfico, os rituais xamanistas, a pornografia, o sagrado, o profano, a doçura e a crueza. «Afrontar os paradoxos», escrevem no programa. A ideia de que possamos estar perante um ritual secreto diz bem do carácter intimista desta coreografia que fez gelar a sala do Pompidou.

«I wouldn’t be seen dead that in that!», se transporta no título a imensa ironia da referência às peles usadas e às cabeças de animais, também pode ser aplicado ao bailarino, eterna metáfora do corpo-máquina, que tem em cada sequência de movimentos que se ultrapassar. È isso que representam a barra, os saltos altos e os corpos tensos em posição. E depois há o sexo, ostensivamente queer, posto a ridículo na sua tentativa de descodificação da mente humana.

O espectáculo estrutura-se a partir de um permanente diálogo entre o vídeo e a cena, mas sobretudo entre as reacções dos espectadores e a passividade dos rostos dos intérpretes. É no trabalho profundo e meticuloso sobre o uso do corpo e o significado do gesto, que cada um dos elementos em cena carrega (intérpretes, objectos, vídeo, música), que se joga um perverso duelo entre a falsidade e o real. Os objectos fálicos (e sobretudo a pila arrastada por um carro conduzido a controlo remoto), as erecções falsas, o momento de “quase-cabaré” e os perturbadores vídeos (as imagens dos caçadores e da chacina dos animais, e os vídeos com as personagens a vaguear pela cidade, prolongando algumas das acções de palco), constituem uma paradigmática descida aos infernos.

Ao inferno de cada um, sobretudo, uma vez que os autores operam uma deslocação da responsabilidade da cena para a plateia. Ao ritual sagrado opõe-se o vício do voyeurismo. Até onde se pode aguentar? O que se quer realmente fazer? Em «I wouldn’t be seen dead in that!», joga-se com a noção de responsabilidade mas, muito particularmente, com a noção de que o poder (poder-se querer, poder-se fazer, poder-se ser) pode ser atraente, mas é demasiado perigoso nas mãos erradas. Metáfora mais do que evidente para a África do Sul corrupta e degenerada que querem representar.

Fotografia de John Hodgkiss (direitos reservados)

Este texto foi escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.

1 comentário:

Anónimo disse...

falando de forma geral pois não vi o espectáculo, na arte performativa, como na política, como em quase tudo na sociedade, o marginal, o que está à margem, muitas vezes acaba instalando-se e transforma-se no sistema, na convenção. Nota-se muito em Portugal esta tendência, pois parece que quem mais defende o statu quo é quem se apresenta como seu desafiador. Vem-me sempre à memória o famoso discurso do Bakunine (anarquista) contra os marxistas: "Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares faz-se por uma minoria privilegiada. Essa minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima, do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana ".
E assim é, e é assim que tenho visto (de fora), o Estado das Artes em Portugal.
António Marques Pereira